Por Lilian Jimenéz-Ramsey
Quando fui abordada pelo nosso querido editor, Henrique Levin, para escrever um artigo “due yesterday” só não caí do cavalo porque estava caminhando rumo à caixa de correios. Esse tipo de “convite”, ironicamente, causa um misto de pavor e orgulho (ainda não descobri a origem deste último sentimento) que evolui em poucos minutos para um total estado de pânico, principalmente depois de desligar o telefone. Imediatamente, a realidade bateu à porta com o fatídico “e agora, José?” Ah, agora é que são elas! “Tu com a tua petulante e infundada onipotência que sempre pula à frente de reações mais racionais!” Ou será o espírito caritativo que as freiras Carmelitas instilaram em mim desde tenra idade? Sei lá, ainda não cheguei a nenhuma conclusão, mas o tempo passa e palavra é palavra. Afinal de contas, trata-se do meu compadre (por implante artificial), e compadre é sagrado, pelo menos lá na Província Cisplatina, quer dizer, no Rio Grande do Sul, que por sinal, tchê,… Bom, deixa pra lá. Isto até parece papo furado.
E assim, deambulando por esses corredores do uso da língua, chego ao da interpretação médica e me deparo com uma realidade transformadora para quem se dedica a esse ofício neste país. Fala-se de “certificação nacional” (national certification) para os intérpretes da área da saúde. O assunto está na boca do povo, só se fala nisso nos círculos pertinentes. E não poderia ser de outra forma. Afinal, a crescente diversificação da população americana reflete-se nos vários setores do país e na necessidade de adaptar os serviços que cada um deles oferece a clientes ou pacientes visando resultados de alta qualidade. No setor da saúde, o governo estabeleceu que o atendimento médico deve focar o paciente (patient-centered care) e levar em conta as suas diferenças culturais e linguísticas (culturally and linguistically appropriate care).
Esta terminologia não é de hoje. O acrônimo CLAS (Culturally and Linguistically Appropriate Services) define o padrão nacional de assistência médica para organizações médicas elaborado pela Joint Commission e emitido pelo Office of Minority Health (OMH) do Department of Health & Human Services (DHHS) dos Estados Unidos em dezembro de 2000. Dos catorze padrões enumerados nesse documento, os de números 1 a 3 referem-se à competência cultural; os de 4 a 7, ao acesso ao idioma e de 8 ao 14, referem-se a apoios organizacionais à competência cultural. Exceto os padrões 4, 5, 6 e 7, que têm força de lei (mandates), os demais são diretrizes (guidelines). Contudo, as organizações de saúde têm o maior interesse em obedecer aos referidos padrões porque do seu cumprimento depende serem entidades reconhecidas (accredited) ou não pela Joint Commission e, por conseguinte, se qualificarem para receber ajuda financeira do governo federal.
A expressão “patient-centered care” já vinha sendo utilizada há muitos anos, mas foi revitalizada no artigo Crossing the Quality Chasm, publicado pelo Institute of Medicine (IOM) em 2001. O principal assunto abordado foi a disparidade no acesso à saúde (health access disparities) por minorias raciais e étnicas no país, concluindo que a qualidade do atendimento médico depende de seis fatores chave, sendo um deles a centralização dos serviços no paciente (patient-centeredness). Dos demais fatores–eficiência (efficiency), efetividade ou eficácia (effectiveness), segurança (safety), serviço oportuno (timeliness) e equidade (equity)–, a equidade é alcançada prestando serviços de saúde de qualidade, independentemente das características pessoais, de origem e socioeconômicas do paciente.
Desprendem-se dessas diretrizes os conceitos de “proficiência linguística” (linguistic proficiency) e “competência cultural” (cultural competence). Conceitos intimamente relacionados com a função do intérprete médico, peça fundamental da tríade (triadic encounter) que constitui, juntamente com o paciente e o profissional de saúde, a unidade comunicativa que tem por objetivo primordial garantir a saúde e o bem-estar dos pacientes com limitada proficiência na língua inglesa (Limited English Proficiency – LEP).
Mas, quem é esse intérprete que trabalha na área da saúde? Além de ser fluente nos dois idiomas de trabalho, deve ser capacitado e qualificado para o desempenho de algumas modalidades de interpretação: consecutiva (consecutive), simultânea (simultaneous) e tradução à vista do texto escrito (sight translation)] e entender ambas as culturas para poder atuar como mediador cultural (cultural broker/mediator) ou defensor (advocate) do paciente quando for o caso. Deve saber como manejar a dinâmica da consulta ou comunicação oral com técnicas específicas que garantam a transparência do intercâmbio de ideias entre as partes e propiciem uma relação de entendimento e confiança (rapport) entre o paciente e o profissional de saúde (health care provider) e a instituição que representa.
Mas tudo isso de nada serviria se o intérprete médico não tiver conhecimento da terminologia médica, de anatomia e fisiologia humanas, sintomatologia, doenças, tratamentos e procedimentos médicos, etc., ou se não conhecer como funciona o sistema de saúde nos Estados Unidos. Essas são algumas das pautas que representam a bagagem de conhecimentos que o intérprete médico deverá possuir para representar com fidelidade a sua profissão. Da mesma forma, servirá para demonstrar que está apto para assumir a carreira quando passar as provas de certificação nacional oferecidas pelo National Board of Certification for Medical Interpreters (NBCMI) ou pela Certification Commission for Healthcare Interpreters (CCHI), dois grupos engajados na defesa da profissionalização do intérprete médico neste país.
Não estranharia se o ano de 2010 for reconhecido como o ano da interpretação médica. As pessoas que por muito tempo se dedicaram a esta ocupação finalmente poderão colher os frutos do seu esforço ao serem reconhecidas como profissionais da área com certificação reconhecida em todo o território nacional. O segundo passo será iniciar um movimento de reivindicação de tarifas condizentes com a sua formação, mas até lá fica meus parabéns às organizações que propiciaram a concretização desta realidade
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