Gio Lester
A minha filha teve a sorte de frequentar uma escola de bairro bem pequena. Ao todo, eram 34 alunos. Duas salas de aula eram o suficiente para atender os alunos do pré à 6ª série. Seus coleguinhas vêm das mais diversas vivências e muitos falam mais de um idioma. Os pais ficavam frustrados ao tentar ensinar a sua língua materna para a nova geração, que vê idiomas como algo que promove a segregação, em vez considerá-los uma vantagem.
Esse parecia ser o ambiente perfeito para colocar em prática o programa School Outreach da ATA: eu, como mãe, já passei pela situação e gostaria de ter recebido ajuda na ocasião.
Bom, permita-me voltar ao início da história. Tenho dois filhos e ambos falam mais de dois idiomas. O menino, que agora tem 34, fala inglês, português, espanhol e italiano. Quando a minha filha, Rebecca, tinha cinco anos de idade, ela falava, lia e escrevia em inglês, português, espanhol e francês. Desde então, ela deixou o francês de lado, mas era gostoso corrigir a lição de casa dela em todos esses idiomas e ouvi-la lendo para a gente.
Por isso, na manhã de 2 de outubro de 2006, levei uma bolsa cheia de novidades para ela, seus coleguinhas de escola e as professoras a fim de ajudá-los a embarcar em uma aventura multilíngue. E, como também sou tradutora e intérprete, decidi falar sobre a minha profissão durante a visita.
Muitos dos alunos já falavam outro idioma além do inglês, apesar de não o fazerem por livre e espontânea vontade. Meu primeiro desafio foi fazê-los compreender que falar outro idioma é algo positivo, não um estigma. Comecei apresentando uma tirinha em português:
Selecionei uma tirinha da série “Baby Blues”, de Rick Kirkman e Jerry Scott, que falava de algo bastante familar a todos, pois tinha que prender a atenção de 16 crianças entre cinco e 11 anos de idade. O desenho da tirinha chamava a atenção visualmente e todos tentaram adivinhar o que o pai e a filha estavam falando. Acho que nem mesmo os autores poderiam ter usado de tanta criatividade como aquelas crianças! Aqui está o original:
Falamos sobre escrever em outros idiomas e a tradução de livros. Mostrei para a turma alguns livros traduzidos, ao lado dos originais, incluindo Harry Potter and the Sorcerer’s Stone e a versão em português do Brasil, “Harry Potter e a pedra filosofal”, além de The Little Prince e “O pequeno príncipe”, um dicionário trilíngue (português, francês e inglês), alguns gibis em português e espanhol e outros materiais impressos.
Eles se divertiram tendo o original e a tradução em mãos. Foi muito gratificante vê-los tentando pronunciar palavras estrangeiras depois de “descobrirem” o significado por trás delas. “Mafalda”, do cartunista Quino, foi um sucesso entre as crianças que sabiam falar espanhol, apesar de não conseguirem ler no idioma. Também ficaram surpresos a ouvir sobre as diferenças entre o espanhol da vovó (geralmente o cubano nesta região da Flórida) e o argentino da Mafalda.
Falei sobre interpretação de maneira bastante prática. Primeiro, contando sobre as situações diferentes em que os serviços de um intérprete podem ser solicitados: “no consultório médico” e “durante uma viagem ao estrangeiro” foram algumas das sugestões.
Fizemos um teatrinho: Felipe, de sete anos, fez o papel de um médico que fala inglês e precisava tratar de uma paciente que fala espanhol, interpretada pela professora Vanessa. As crianças fizeram muitas perguntas. “Como é que um médico pode cuidar de um paciente sem entender o que ele está dizendo?” “Como o paciente vai explicar o problema para o médico se não falam a mesma língua?” Eu entrei em ação como intérprete, servindo de ponte linguística para a emoção das crianças!
No segundo teatrinho, a minha filha Rebecca se aproximou de Natalie, uma turista, e perguntou ―em português!― se ela queria brincar. Natalie não entendeu nada e quase ficou com raiva por causa de tanta frustração, até que a intérprete chegou para ajudar. Desta fez, Felipe salvou o dia atuando como intérprete e facilitando a comunicação entre Rebecca e Natalie. A irmã mais velha dele, Bela, de nove anos, o ajudou sussurrando-lhe as frases ao pé do ouvido, o que me deu outra oportunidade de falar sobre a profissão e as várias modalidades da interpretação.
Por último, a Sra. Ivonne Benitez, diretora da escola, fingiu vestir a toga de juiz e segurar um martelo, transformando-se instantaneamente na juíza do Tribunal de Imigração que avaliou o caso da professora Vanessa. A entrevista com a juíza foi rápida e as crianças ouviram a professora chamando a diretora de “Meritíssima” e a mãe da coleguinha Rebecca de “Senhora Intérprete”.
Photo Credit: Rebecca Lester ― Alunos de 1ª a 5ª série da House Montessori School em Miami
NOTA DA EDIÇÃO: A matéria original foi publicada, em inglês, no boletim informativo da Divisão de Intérpretes da ATA, na edição de outono de 2007.
GIO LESTER trabalha com tradução e interpretação desde 1980 e é credenciada pela ATA no par de idiomas português > inglês. Foi administradora da Divisão de Intérpretes da ATA e atualmente é presidente da Association of Translators and Interpreters of Florida, Inc., que ajudou a fundar em 2009. Também faz parte da National Association of Judiciary Interpreters and Translators e da International Association of Professional Translators and Interpreters.
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