Rafa Lombardino
Natália Estrella, tradutora de espanhol e professora de tradução para dublagem, lançou recentemente uma iniciativa de leitura para tradutores que trabalham com a língua portuguesa. O objetivo é aprimorar o vocabulário e a construção de frases em português, a língua de chegada dos tradutores-leitores, além de aproximá-los da literatura em língua portuguesa. O Clube de Leitura para Tradutores foi iniciado no Instagram da tradutora, que organizou os interessados em um grupo de debate privado. Foi também organizado um vídeo de destaques com a capa de alguns títulos selecionados pelos participantes.
Especializada em traduções para duas áreas tão distintas, engenheria e dublagem, Natália foi responsável pela versão brasileira de mais de 700 episódios nos últimos 4 anos. Seu trabalho criativo inclui novelas latinas, séries espanholas, filmes, reality shows, produções infanto-juvenis do canal Nickelodeon, além da programação veiculada pela MTV, Telemundo Miami, Netflix e Amazon. Ela também é professora das turmas de língua espanhola do curso ESTRADA – Escola de Tradução Audiovisual.
Na entrevista a seguir, Natália conta um pouco sobre a iniciativa e as expectativas do clube nessa primeira edição.
Como surgiu a ideia para o grupo de leitura?
Em outubro de 2019, comecei a estudar sobre linguagem e a importância da ampliação do vocabulário como ferramenta de trabalho do tradutor. Muitas vezes não paramos para pensar que para ser um bom tradutor não é necessário somente ter um nível de conhecimento avançado do idioma de chegada, mas também ter um vocabulário amplo, um imaginário “com músculos” para criarmos boas versões. Além do interesse pelo tema, eu procurava também entender por que os textos que chegavam até mim para revisão eram praticamente uma sopa de letrinhas. O tradutor claramente não sabia o que estava lendo e, consequentemente, não sabia o que estava escrevendo. O ponto central ali era a boa e velha interpretação de textos.
Até que um dia, enquanto fazia minha habitual leitura das Escrituras e meditava sobre o quanto aquela linguagem mais difícil da Bíblia estava me auxiliando como tradutora, pensei: “Será que alguém toparia entrar em um Clube de Leitura para Tradutores?”. Lancei o desafio no meu Instagram propondo a leitura de dois clássicos da Literatura Brasileira e, para minha surpresa, a adesão foi imediata e inacreditavelmente acolhedora.
Como a iniciativa foi recebida pelos colegas de profissão?
Os participantes, em sua maioria, são tradutores nos primeiros anos de profissão. Percebi que os colegas mais experientes acharam a ideia incrível, mas não aderiram (talvez por falta de tempo). Aproveito para dizer que isso é uma pena, mas acredito que o cenário vá mudar na nossa próxima edição, porque vejo que o maior aproveitamento prático do Clube está sendo justamente para os 10% que são tradutores literários e experientes. Testemunhos como “não leio boa Literatura Brasileira há mais de uma década”, “só agora eu percebi que só lia em língua estrangeira” ou “acho que fiquei meio burro com o passar dos anos” têm chegado aos montes na minha caixa de mensagens privadas. Os participantes estão simplesmente apaixonados pelo autor escolhido e pelo nosso Clube.
Destaque alguns dos livros selecionados pelos participantes.
Dom Casmurro é o queridinho da galera. Mais da metade dos participantes o escolheram, até porque os livros do Machado de Assis estão disponíveis de forma legal e gratuita no site Domínio Público. Além dele, temos Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, todos de Machado de Assis, O Cortiço de Aluísio Azevedo, Senhora de José de Alencar e Macunaíma de Mario de Andrade, entre outros… São livros que formaram os alicerces intelectuais dos leitores brasileiros durante o último século e agora nos levam de volta às raízes e àquela que deve ser a formação inicial do tradutor: a boa e velha leitura de qualidade.
Tem alguma curiosidade que gostaria de compartilhar sobre essa primeira edição?
Uma participante que é tradutora de clássicos entrou em contato comigo para dizer que, após o início do Clube, começou a usar palavras “novas” em suas traduções. Palavras que ela não usava porque não se lembrava mais, apesar de atuais. Outra colega, disse que entregou um trabalho do curso de tradução e o professor notou que a escrita dela estava diferente, inclusive pediu que ela escrevesse com menos formalidade.
Deixe uma dica para os colegas de profissão para esta nova década.
Os índices de analfabetismo funcional são alarmantes: apenas 13% dos brasileiros compreendem boa parte do que leem. Qualquer tradutor que queira atuar na profissão de forma digna precisa ler muito! Vejo muitos profissionais tentando pular etapas, tentando se tornar bons tradutores se olhando no espelho e falando frases motivacionais e sendo ótimos em marketing. Essa autoconfiança pode ajudá-los a entrar no mercado, mas não a permanecer. O que vai efetivamente mantê-los no mercado de tradução por anos é o que de fato importa: ser um bom tradutor.
Excelente iniciativa da colega Natália. Realmente, a qualidade da nossa escrita declina quando nos afastamos da leitura. É preciso haver um cuidado e esforço contínuos para encontrar ou criar tempo para a leitura de bons livros no dia a dia.
A entrevista fechou com chave de ouro com o trecho abaixo, um importante lembrete a todos que ingressam na profissão de tradutor:
“Vejo muitos profissionais tentando pular etapas, tentando se tornar bons tradutores se olhando no espelho e falando frases motivacionais e sendo ótimos em marketing. Essa autoconfiança pode ajudá-los a entrar no mercado, mas não a permanecer. “